O Capitalismo não são apenas trocas voluntárias
O Capitalismo é o sistema posterior ao feudalismo, que surgiu de suas ruínas, através das revoluções burguesas que destituíram a velha ordem feudal, e substituiu o poder dos reis, pela dominação da classe burguesa. Tanto sistematicamente, quanto economicamente e ideologicamente.
O Capitalismo nem sempre existiu, mas é um sistema que passou a existir a partir dos escombros do feudalismo, tendo se consolidado a partir da Revolução Industrial. Ele se caracteriza por ser uma sociedade complexa, que não representa a sua abstração jurídica, seja na forma da esfera de consumo ou da superestrutura, mas sim que se revela através das características práticas, da qual “escravizam um homem sem ele saber”, através da constante briga e troca de poderes, e da coercitividades político econômica. Mais valia, trabalho assalariado, condicionamento de consumo, democracia burguesa, impostos, horas extras, divisão do trabalho são algumas das formas que o sistema capitalista te explora sem a maioria perceber, na dialética marxista.
Marx definia a relação das forças produtivas e o abstrato, ou seja, a totalidade do Capitalismo,como uma “via de mão dupla”. Para isso, dividiu, de forma analítica, a sociedade em dois níveis. O primeiro é a infraestrutura, que constitui a base fundamental da economia, com a relação do proprietário e não proprietário, e entre o não proprietário e os meios e objetos do trabalho. Ou seja, a infraestrutura é a economia em si.
Já o segundo nível é a superestrutura, que consiste na camada político ideológica, e é constituído pela estrutura jurídico política, representada pelo Estado e pelo direito, e a estrutura ideológica, referente às formas de consciência social, tais como a religião, a educação, a filosofia, a ciência, a arte e as leis.
A infraestrutura e a superestrutura, ou o concreto e o abstrato vão se influenciar para trazer uma ideia de qualidade para a primeira. Ou seja, a ideologia e o estado vão se moldar para aperfeiçoar as relações econômicas, ou, a noção de realidade é feita para trazer mais “conforto” para o homem, e para o manter inerte frente a essas explorações e injustiças que,quando não são indiretas, a mídia e a conformidade da sociedade tende a normalizar, como se fosse algo natural é imutável, quase como um plano divino.
Tendo em vista que as forças produtivas têm interesses difusos na economia, elas vão disputar o controle da noção de realidade, ou, tentar alterar, a seu modo, o controle da abstração, e do próprio funcionamento da infraestrutura. Um exemplo disso é a taxa de juros, que é apenas um número gerado pelo Banco Central, em outras palavras, uma abstração da superestrutura.
Trabalhadores e empresários vão desejar uma taxa de juros menor, enquanto banqueiros vão desejar uma taxa de juros maior. Para isso, vão usar argumentos como inflação e desemprego.
Pela dialética marxista, ao contrário da hegeliana, ganhará essa batalha quem tiver mais força, seja coercitiva, econômica ou política, quem conhece o conceito de luta de classes sabe do que estou falando. Em uma sociedade baseada em classes diferentes, com interesses sócio econômicos e ideológicos diferentes, tais interesses entram em constante contradição, que se manifesta em vários planos diferentes e que leva a história a frente. E é aqui que o Estado tem o seu papel como um dos sustentadores do Capitalismo, desde o legitimador da propriedade privada dos meios de produção, mantenedor da superestrutura, coercitividade política, e mantenedor da ordem de uma sociedade em constante briga política por interesses divergentes. Ou seja, como o principal conciliador dessas constantes contradições.
O Estado atual surgiu, como explica Lenin ,para dar sustento a tudo isso, e manter essa dialética e fluxo entre a abstração e a realidade, em favorecimento a uma classe em especial.
Com essa abstração, as coisas nunca são como parecem ser, mas ficam apenas no papel.Basicamente, o Capitalismo é uma sociedade complexa que se baseia nesse intenso jogo de poderes, da qual o Estado tem o seu papel importante, e que se pauta em coisas como:trabalho assalariado, intenso desenvolvimento tecnológico, divisão de classes, alienação,divisão do trabalho, propriedade privada dos meios de produção. Feitas essas condições, se desenvolvem as contradições e realidades, crises, características típicas da sociedade capitalista, e da qual o Estado ajuda a manter, quando o sistema está prestes a quebrar por suas próprias contradições.
Já os austrolibertários interpretam as coisas de uma forma diferente.
Eles veem as relações de forma individual, e do individual entre o objeto. O Capitalismo seria então, apenas uma ordem natural, baseada em trocas livres e espontâneas dos indivíduos, para outros indivíduos, em condições que propiciem isso. O que Marx chamava de “Esfera de Trocas/Esfera do Consumo” (e que para o marxismo é apenas uma parte, a superfície do Capitalismo, pois o buraco é mais embaixo), os austrolibertários enxergam o Capitalismo pleno, como sistema em si.
Filosoficamente, se ligam a questão da propriedade e liberdade, já que é a única garantia para que o Capitalismo (como trocas livres) exista, logo, não há necessidade do Estado para eles.
Há ainda liberais que definem o Capitalismo como qualquer sistema onde há acúmulo de capital, o que levaria a crer que qualquer sistema (incluindo o socialismo) seriam teria um pano de fundo de Capitalismo, mas não um pleno ou real.
As duas visões levam a crer que o Capitalismo sempre existiu, e que ele é natural ao ser humano. Essa asserção, é claro, é ahistórica. O Capitalismo, e a própria economia (mais especificamente o que entendemos como mercado hoje, ainda mais em níveis tão integrados globalmente como os atuais) nem sempre existiu, nem a monetização (não tem nem 400 anos), mercado consumidor interno, a prática de juros, economia política e etc, ela passa a existir através de um determinado ponto da capacidade e intervenção humana. Ela necessita desta para existir, logo, segue os mesmos limitadores e escopos que esta segue. Ela é uma construção social, não uma lei natural embora alguns tratem como se o mercado fosse alguma espécie de ser divino transcendental.
Não há nenhuma sociedade não estatal em que se pratica o puro capitalismo. Nunca houve algum antropólogo que tenha acha do alguma tribo “primitiva” capitalista. Não existe. Porque o capitalismo depende de estruturas definidas e não naturais, um mercado impessoal, o mercado como uma instituição que passa a existir, e não que tenha sempre existido como se fosse algo já pronto
Porém, em qualquer sociedade humana pré estado, o mercado interno, praticamente inexiste, e mesmo o mercado externo, importante pra se adquirir mercadorias estrangeiras que não existem dentro daquela sociedade, mesmo sendo bem antigo, nem sempre existiu.
Toda a economia interna se baseia nas relações e integrações humanas, na tradição, na cultura e está incrustada nas outras instituições sociais. Valores morais e religiosos irão ditar a economia, querendo ou não. O caso da igreja católica e a usura é um exemplo disso. Dificilmente alguém que não pense na sociedade antes de si mesmo iria ser aceito no grupo. E isso seguiu assim até o advento do estado moderno, a criação do indivíduo no século XVI e do liberalismo logo após.
Dizer que o indivíduo é egoísta por natureza, também é uma visão ahistorica. O homem é um produto do seu meio, não coordenado ou determinado por desejos ou aspirações já inerentes, no máximo sobrevivência para si e a espécie, que é o instinto, apenas o básico que está programado no nosso comportamento, para sobreviver. Obviamente, em um meio que privilegia e incentiva o individualismo, como a sociedade capitalista, o egoísmo se torna natural. Você nunca vai achar tribos primitivas, onde já havia uma natureza egoísta e individualista do ser humano, na antropologia.
Por outro lado, essa visão é também contraditória, o que é uma má noticia aos liberais. Se o homem é egoísta, por qual motivo ele deveria liberar sua essência, deixá la solta? Seria isso moral?
E por qual motivo o Estado, que é um conjunto de homens igualmente egoístas, poderia dar conta de segurar o “homem mal”? Aqui já começamos a notar as contradições da filosofia burguesa. Ela não foi feita realmente para estar certa, mas tão somente para legitimar a hegemonia da classe dominante, e sua propriedade e ideologia. Não atoa, o Estado moderno teve suas características dissertadas e criadas através de autores e filósofos liberais e burgueses, como Locke e o Adam Smith, Porém, isso fica para outro artigo.
É sempre bom lembrar que a raça humana tem 2,5 milhões de anos, o homo sapiens tem 200 mil, o homo sapiens sapiens tem 70.000 e a ideia do indivíduo ser mais importante que a sociedade só tem 300 no máximo.
Enquanto isso, a visão marxista tem uma visão histórica do começo do Capitalismo (pós revoluções burguesas, com seu estabelecimento pleno a partir da revolução industrial), como ele agiria realmente na prática através da influência de poderes, além de uma abordagem materialista, não só filosófica ou ético jurídica.
Porem, analisando de uma certa forma, os austrolibertários estão certos. Na verdade, o certo é afirmar que “não estão totalmente errados”. Estão certos e ao mesmo tempo não estão. Sim, isso é possível. No capitalismo, como uma sociedade formada por categorias sociais contraditórias em si, é possível estar certo e errado sobre algo ao mesmo tempo.
No capitalismo, ao contrário das outras formas sociais, ninguém está submetido à dominação direta, pessoal. Não há um senhor de terras que é praticamente seu dono e que exerce a coerção política e econômica ao mesmo tempo. No capitalismo, a vontade dos que não possuem meios de produção não é propriamente a vontade, e nem está submetida à vontade do patrão. No escravismo, a vontade do escravo é a vontade do senhor.
No feudalismo, a vontade do servo está totalmente submetida à vontade do senhor. Juridicamente, no capitalismo, somos todos sujeitos de direito de vontade livre. Nossa vontade não está submetida à vontade de ninguém (apesar de estar submetida a princípios abstratos).
Legalmente, ninguém está submetido à vontade de ninguém. E isso é verdade. Mas isso, diz
respeito apenas à esfera de circulação. Nessa esfera, como dizia o velho Marx, cada um é livre para vender o que é seu em iguais condições jurídicas. Lembram — se daquele formalismo de que somos todos iguais? É verdade. Perante a lei somos todos iguais, mesmo que alguns possam contratar 600 advogados e outros nem com a defensoria pública possam contar. É ideológico toda aquela posição que reduz tudo ao reino superficial da circulação de mercadoria, pois não olha para as condições concretas das pessoas.
Formalmente somos todos livres em vontade e iguais. Mas concretamente estamos todos submetidos à fome, frio, sofrimento, doenças, necessidades naturais. E, de pois que o contrato de trabalho é assinado, o trabalhador passa a estar submetido ao reino do trabalho abstrato, comandado por um tempo abstrato onde cada um deve gastar sua energia para gerar valor ou realizar o valor gerado. Nesse Reino da produção reina a hierarquia, desigualdade, voluntarismo do patrão. Reina a alienação. Por detrás do Jardim do Éden da circulação, está a desigualdade e injustiça da produção, e para esse reino quase ninguém ousa olhar.
Então, formalmente, o Capitalismo enquanto “trocas livres” está certo. Concretamente,errado.
Há uma pura abstração da realidade social quando se fala do Capitalismo com tanto teor voluntarista. É necessário que existam pobres e miseráveis, que vendam sua força de trabalho em troca de uma chance de sobreviver. E em um mundo globalizado e interligado como no capitalismo moderno, isso é a base que o mantém. A realidade é o bastante para mostrar que, boa parte do Capitalismo, não é nada voluntário em sua base fundamental. Se o for, pessoas que estão sendo assaltadas também estão apenas submetidas a uma troca voluntária, a uma relação de igualdade, já que elas têm a opção de serem mortas se não quiserem colaborar. O mesmo acontece com a classe proletária que se recusa a vender sua força de trabalho em troca de sobrevivência. Há uma grande diferença sobre como as coisas deveriam funcionar na teoria, e da parede de concreto que é a realidade.
Apesar de haver um discurso de que somos todos livres, de que a liberdade de um começa onde termina a do outro, essas coisas também entram em choque com a realidade. Isso não é feito por acaso, mas é algo calculado e sistemático, como becos sem saída. Somos todos livres formalmente, mesmo que a maioria não possa usar essa liberdade formal para ir passear em Paris a hora que der na sua telha, ao contrário de alguns poucos. É um exemplo claro de que as coisas não correspondem ao que está posto na teoria, um exemplo um tanto exagerado, mas de como a liberdade jurídica prometida a todos é reduzida a pó pelos fatos concretos. Não há nem como se falar de que essa igualdade jurídica seria “igualdade de oportunidades”, e não de “resultados”. A começar pelo fato de ninguém ter igualdade de oportunidades, e de os resultados de alguns são ganhos justamente pela maioria não ter as mesmas oportunidades, não por algum tipo de meritocracia ou algo do tipo.
Como o próprio Hayek admitia, não somos, formalmente, submetidos às vontades uns dos outros no capitalismo, mas somos todos submetidos a um princípio abstrato: o dinheiro que faz mais dinheiro. A dominação no capitalismo é abstrata e não pessoal. Capital, Direito,
Estado, Dinheiro. Todos princípios abstratos que dominam a vontade de todos. Como diz Moishe Postone, a dominação no capitalismo não se dá entre pessoas diretamente, mas indiretamente por meio de estruturas abstratas. Max Weber e Marx entenderam isso perfeitamente.
Texto da antiga CPL. Quem souber o autor pode dizer nos comentários que dou os créditos.