Por Shanita Hubbard
15 de dezembro de 2017
Há uma esquina em quase todos os bairros que ensinam lições sobre poder, racismo e sexismo aos jovens. No lugar, onde cresci, eu tinha que passar quase todos os dias por essa rua para chegar em casa da escola.
Esta esquina é onde alguns dos caras do bairro ficam de pé, tocam música, falam sobre o artista que deve ter o título de maior rapper e, de repente, eles se transformam em perigosos predadores quando as meninas passam. Este é o lugar onde jovens garotas como eu aprendem a se voltar para nós mesmas e permanecer em silêncio.
Nessa esquina, como tantas outras no mundo, seu corpo e a sensação de segurança foram roubados. Em um bom dia, se você e uma amiga permanecessem em silêncio, ao passar pelo grupo de “caras do canto”, que todos tinham cerca de 15 anos de idade gritando sobre o que eles fariam com seu corpo de 12 anos, seria um experiência de curta duração.
Em outros dias, especialmente se você estivesse andando sozinha, a coisa aumentariam rapidamente. Um dos homens segurava sua bunda e você fingiria que não sentia isso. Se você revidasse isso iria piorar as coisas: se você resistisse, eles gritariam com você, iriam xingar você e, e dependendo do caso, iam te seguir até em casa, até você correr pra dentro de uma loja e os esperar desistirem. Mas passe por essa esquina o tempo suficiente e essas coisas começam a parecer normais.
A normalização do comportamento predatório se manifesta de muitas formas. Ainda não está claro como a comunidade negra responderá à notícia de que ícones como Russell Simmons e Tavis Smiley estão entre aqueles homens que foram acusados de má conduta sexual. (Ambos negam as acusações.) Ao contrário de quando as acusações foram feitas contra Harvey Weinstein, no entanto, ainda temos que ver uma onda de figuras públicas proeminentes contra as vítimas. O que é claro é que muitos de nós ainda realizamos ginástica mental, do tipo distribuído durante os filmes de Woody Allen, para justificar assistir a shows de R. Kelly, apesar de anos de relatos sobre ele que estão vitimando jovens. Para alguns de nós, a base dessa dissonância cognitiva foi estabelecida em uma idade muito jovem.
Dos meus anos passando por esse cruzamento, cheguei a acreditar — erroneamente — que uma pessoa só pode ser uma vítima se aqueles que cometem as ofensas contra ela tiveram grande poder. Por qualquer definição, os garotos da esquina tinham pouco poder — e eles mesmos eram vítimas de quem tinha muito poder. Eles foram vítimas de um tipo de poder que atravessou esse mesmo cruzamento, arrancou as pessoas para longe de suas famílias e fora da comunidade por décadas. Esse tipo de poder que poderia parar e revistá-los, e retornar aos seus carros de patrulha e continuar com o seu dia. Em um bom dia, se esses caras estavam sozinhos e ficavam em silêncio sem resistir, as consequências não seriam tão graves. Alguns policiais iriam puxar, estapear, xingar e mandar eles saírem da esquina. Nos outros dias, especialmente se os meninos estavam em grande grupo, as coisas poderiam aumentar rapidamente. Às vezes, um amigo da esquina não voltaria para a casa naquela noite.
Este abuso sancionado pelo Estado nas mãos da polícia evocou, e continua evocando, uma resposta comunitária que, literalmente e figurativamente, exige a proteção legal desses jovens. Uma comunidade tem razão em lutar contra os excessos policiais e a brutalidade. Ela deve encorajar as vítimas de violência policial a falar e colocar pressão sobre os políticos locais a tomar uma posição.
Mas quando sua comunidade luta por aquelas pessoas que o aterroriza, ela envia uma mensagem muito complicada e mista. Pior ainda, às vezes, os membros da comunidade que estão lutando consistem em mulheres jovens que já eram as pequenas meninas que caminhavam para casa da escola fazendo o que podiam para serem invisíveis na esperança de evitar o que ninguém nunca chamou de agressão sexual. Isso envia a mensagem de que sua dor não é uma prioridade. Diz que talvez você não seja uma vítima, porque aqueles que estão prejudicando você também estão sendo prejudicados e precisamos concentrar nossa energia em protegê-los. Afinal, suas vidas estão em jogo.
#MeToo está desencadeando memórias dessa esquina que eu tentei esquecer por 20 anos porque me ensinaram que há necessidades maiores na comunidade. Talvez isso seja parte da razão que os estudos indicam que apenas uma em cada 15 mulheres afro-americanas relatou ser estuprada. Nós vimos o poder não controlado dos homens brancos violar nossas comunidades, e nós carregamos a mensagem de “não agora” quando se trata de abordar nossa dor se o ofensor também for negro.
Talvez seja por isso que mais vítimas de agressões sexuais na comunidade do hip-hop não se apresentaram. É possível que as mulheres negras que trabalham no hip-hop sejam vítimas silenciosas, com a dor de serem condicionadas a não se priorizar? Eu suspeito que isso seja verdade — mas, não posso dizer com certeza.
Como podem estas mulheres que vivem no cruzamento notório racial e sexista, que cresceu passando por aquela esquina, ser uma parte da conversa nacional do #MeToo quando não podem serem ouvidas em sua própria comunidade? A intersecção de raça, classe, sexismo e poder são perigosos, e as mulheres mais vulneráveis entre nós navegam sozinhas. Elas estão assustadas, esperando para lutar por aqueles que as aterrorizaram porque um predador aparentemente maior está em liberdade. Seus rostos nunca vão aparecer na capa da revista Time e, em alguns casos, seu silêncio nunca será quebrado, se elas mantiverem as mesmas falsas noções de poder e vitimização que eu coloquei uma vez quando a dissonância cognitiva tornou-se muito forte.
Shanita Hubbard é uma professora adjunta de justiça criminal no Northampton Community College na Pensilvânia, uma escritora, uma oradora e um advogada da justiça social. Texto em inglês pode ser lido aqui. Tradução livre Yatahaze. Poderá conter alguns erros por ser tradução amadora.